Dando uma lida no Blog Vermelho editado pelo Spensy Pimentel, que além de editor do blog é autor de "O Livro Vermelho do Hip Hop" (Clique no link para ler), que é um bom livro sobre a historia do movimento, achei uma entrevista feita por ele com o G.O.G, que sem duvidas é um dos maiores expoentes do Rap politizado e combativo no Brasil, prova disso é o seu CD ao vivo, distribuído de forma totalmente independente e com pagamento via contribuição voluntaria, uma verdadeira afronta aos grandes empresários, donos de gravadoras e a qualquer um que lucra em cima do trampo de artistas. Se você ainda não tem o CD clique aqui e baixe o seu no site do G.O.G.
Tirei essa entrevista da revista "Cultura e Pensamento", que é uma revista do governo federal de distribuição gratuita, apesar de eu nunca ter visto antes (vai saber onde ela é distribuida...), parece ter um conteudo interessante, mas não posso falar porque só li a entrevista do Spensy com o G.O.G, de qualquer forma vale a pena conferir a revista, clique aqui e baixe.
Abaixo segue a entrevista:
UM DOS PRINCIPAIS NOMES DO RAP NACIONAL,
O BRASILIENSE GOG FALA DE SUA TRAJETÓRIA,
REAFIRMA A NECESSIDADE DE ABERTURA ARTÍSTICA
NA VERTENTE ENGAJADA DO GÊNERO E DIZ QUE
AS EXPERIÊNCIAS DO MEIO VARIAM CONFORME
TRAJETÓRIAS PESSOAIS E REGIONAIS DIFERENTES
cultural norte-americana, o Hip Hop lutou para conquistar
o status de filho legítimo da diáspora africana. Hoje, tem
patrocínio dos órgãos públicos, além de respeito e admiração
por parte de artistas mainstream e intelectuais da academia,
e um público cativo espalhado pelas periferias urbanas de
todo o país.
Representante da primeira geração de artistas-ativistas que
difundiram o movimento no Brasil, em fi ns dos anos 80, e um
dos grandes responsáveis por esse reconhecimento tão amplo,
o brasiliense (mas gerado em Gilbués, Piauí, como faz questão
de frisar) Genival Oliveira Gonçalves, 42 anos de idade, mais
conhecido pelas iniciais GOG, sustenta há mais de uma década
a reputação de grande letrista do rap nacional, refletida em
uma carreira sólida e frutífera. Em 15 anos, Gog já lançou oito
álbuns, quase todos em esquema independente ou em parceria com
outros selos e distribuidoras. Não são “discos de ouro”, para lembrar a distinção
concedida pela agonizante indústria fonográfica tradicional – ele calcula que,
ao todo, vendeu entre 300 mil e 400 mil discos, muitos deles de forma direta,
sem intermediários –, mas garantiram a sobrevivência do artista e de um
razoável número de “parceiros” que gravitam em torno do rapper. Com a Só
Balanço Produções, pôs em prática também um outro ensinamento trazido pelos
pioneiros do movimento black power, a autogestão dos negócios: passou a
lançar outros grupos, promover eventos, vender roupas. Atualmente, prepara
o lançamento de um DVD, com a gravação de um show promovido no Teatro
Nacional, em Brasília, e participações de artistas da MPB, numa gama que vai
de Maria Rita a Paulo Diniz, passando por Lenine e Gerson King Combo.
Essa abertura para a diversidade é marca do rapper. Gog calcula que
realiza de quatro a cinco shows por mês, Brasil afora, e igual número de
palestras – em outubro, estava previsto que fosse a eventos tão variados
como um debate sobre “conhecimento e cultura livres”, promovido no âmbito
do programa Cultura e Pensamento, e o festival Rap Rep, que reúne rappers
e repentistas em Campina Grande (PB). Anos atrás, ele participou de um
curso de formação do Movimento dos Sem-Terra (MST), cuja causa defende
com convicção.
Os escritores de periferia que atualmente constituem o movimento
da Literatura Marginal, vicejante em São Paulo e várias outras cidades,
também reconhecem Gog como o primeiro rapper de destaque que convidou
um poeta – no caso, Sérgio Vaz, idealizador dos hoje famosos saraus
da Cooperifa, na zona sul de São Paulo – a subir ao palco em um show para
declamar seus versos. Em conseqüência dessa aproximação, Gog participa
agora da coletânea Suburbano convicto – Pelas periferias do Brasil, que
reúne autores “periféricos” de vários estados, como o movimento denomina,
e também deve lançar no ano que vem um livro próprio, com suas mais de
100 poesias transformadas em letras de rap e, talvez, crônicas sobre os 25
anos de “caminhada” no Hip Hop. Essa abertura para o mundo das letras,
como se verá na entrevista a seguir, está ligada a uma atitude do rapper que
se destaca em relação a um dos principais epítetos que o Hip Hop construiu
sobre si nas décadas passadas, o de “cultura de rua”. Para Gog, a escola, o
ensino formal é, sim, importante e insubstituível, e o rap só terá a ganhar
nesse contato com o mundo da literatura. Tal visão se ancora numa experiência
pessoal: Genival é um dos poucos da primeira geração do Hip Hop
nacional que teve acesso ao ensino superior – muitos não completaram o
ensino básico. Ele cursou seis semestres de Economia em uma faculdade
particular de Brasília – abandonou a escola porque não se identificava com
o ambiente universitário, extremamente elitista à época.
No discurso de Gog, essa postura aparece ligada a outro traço que
o distingue fortemente de um certo Hip Hop nacional – por vezes erroneamente
entendido nos últimos anos como única opção possível para o
movimento, como ele mesmo frisa na entrevista. O rapper cresceu em uma
família pobre, mas estruturada, com pai e mãe presentes desde “a certidão
de nascimento”. A maneira como essa história pessoal se articula com a
construção de um discurso de tom francamente paternal, no sentido mais
amplo do termo, chama a atenção de quem acompanha o rap nacional porque
foram diversos os rappers que, ao longo das últimas décadas, a despeito
do discurso politizado, se esquivaram de assumir que servem de “exemplo”
ou “referência” para seus jovens ouvintes. Genival, como se verá, percebe
raízes profundas nessa atitude.
Gog nos recebeu em pleno sábado à noite, num breve intervalo do
trabalho que tomava seu tempo no último mês de outubro, a edição de
seu primeiro DVD. Conversamos ao ar livre, enquanto ele jantava numa
barraca de churrasquinhos numa praça da Candangolândia, cidade-satélite
de Brasília, próxima ao Guará – onde passou a residir após a morte do pai e
hoje mantém o estúdio em que trabalha. Leia a seguir os principais trechos
da conversa.
Cultura e Pensamento • Você tem sido chamado nos últimos anos de
“o poeta do rap”. Como lhe soa essa denominação?
Gog • Isso tem dois lados para mim. Uma hora me incomoda, eu
gosto por uns momentos… Muita gente fala: eu ouço Gog porque ele
é certinho. Eu não sou certo, mano. Por que eu não uso palavrão nas
músicas? É uma forma de atrair a minha própria comunidade, a própria
casa do parceiro, a mãe, a avó, o pai do cara, é uma estratégia. Não que
eu não fale palavrão, o meu modo de ação e de atração usa isso, por isso
o meu texto é dessa forma. Isso não torna o meu trabalho light. Outra
coisa que me incomoda é quando dizem: ah, o trabalho do Gog é político.
Não é político, é politizado – é diferente. É dar um começo, um meio e
um fi m. É falar do problema, mas apontar a solução. Tem que ter pé e
cabeça. Agora, em outros momentos, claro que agrada: por exemplo, eu
tive a oportunidade agora de participar dessa série “Pelas periferias do
Brasil” (organizada por Alessandro Buzo). Hoje, o que comanda o Hip Hop
é a chegada da literatura periférica. Você vê grupos de rap participando
dos saraus da Cooperifa (grupo cultural da Zona Sul de São Paulo),
também agora tem o Sarau do Rap, lá no Centro de São Paulo, você vê
vários grupos que vêm de longe, estão toda quinta-feira lá. Isso mostra
que, daqui para a frente, os textos do rap vão melhorar sua qualidade, e
os assuntos vão ser abordados na sua infi nidade. Uma carência que eu
vejo no Hip Hop é que, quando você aborda um assunto, todo mundo fica
batendo na mesma tecla. E não é assim, tem temáticas mais amplas, que
precisavam ser mais bem tratadas.
CP • Então você entende que é chamado de “poeta do rap” por causa
da linguagem menos agressiva. Nesse sentido, o que seria poesia, então?
G • É o uso da metáfora, em vez do discurso ácido, a palavra óbvia.
Isso abre uma caminhada, tanto é que professores, universitários, outras
camadas da sociedade têm uma linha direta com o meu trabalho, isso foi
decisivo para mim. Eu estou no meu melhor momento de crescimento, de
maturidade, em que o trabalho toma uma dimensão, mas com volume
de pensamento, nós não tiramos nem desagregamos o trabalho de
autogestão, de nós mesmos comandarmos nossas coisas. Tem alguns
parceiros, mas desde que não firam os nossos princípios. Às vezes, no
Hip Hop, as pessoas esperam muito uma ação externa – que não virá…
CP • O que é essa “palavra óbvia” que a metáfora substitui?
G • A palavra óbvia é aquela que só te dá aquele sentido, aquela
visão daquele assunto. A metáfora, a poesia, no caso do meu rap, é o
que traz vários canais de pensamento. Você ouve de uma forma, ele ouve
de outra, mas todo mundo somando naquele momento. É isso que dá a
diversidade de abordagem de um ponto. Eu creio que o Gog vai ficar para
a posteridade, meu trabalho não é uma coisa imediata. O que resume
meu trabalho é isto: maturidade.
CP • O que trouxe essa maturidade?
G • Duas coisas: a família e a informação, o acesso à educação.
Chegar até a faculdade foi uma coisa decisiva para mim, para eu saber
discernir as coisas, “olha, até aqui eu posso ir”. O que tira a vida dos
parceiros muito cedo é exatamente a falta da noção do limite… O certo
também tem limite, ele tem que ser trabalhado. Você pode perder a razão
dentro da razão. Por exemplo, eu estou certo em relação a você dentro
de uma fi ta, mas a forma como eu cobrar pode trazer tudo de volta contra
mim. Essa maturidade é que a gente tem que passar para os moleques.
CP • O caminho para a informação passa, então, pela escola, pela
educação formal mesmo?
G • A leitura, a informação é um mundo, e ela te leva deste mundo
aqui, te rouba dele. O cara na quebrada não sabe que existe esse outro
mundo, o mundo dele é isto aqui: churrasquinho, cervejinha no fi m de
semana. Ele não tem teatro, não tem cinema, não tem privilégio.
A escola é importante porque forma senso crítico, você passa a ter noção
de mundo. A televisão não te dá essa noção de mundo. Ela dá noção da
grandeza do mundo, mas não dá noção da sua importância no mundo.
CP • Mas é possível tudo isso mesmo com a escola de má qualidade
que existe no Brasil?
G • Mesmo assim. Você não pode julgar que a escola está podre.
Ela é um fruto que não está perfeito, mas não vai te matar se você ingerir.
Eu estudei sempre em escola pública e fui despertado por bons professores.
A educação brasileira é falível no momento em que não tem estímulo para
o professor, para o aluno, mas a gente sabe que mesmo ali você tem uma
oportunidade para se despertar. O problema não está no habitat, se mora
na favela ou nos prédios, está no que é inserido na mente desses moleques.
Por isso que eu falo sempre da campanha: vamos colocar um livro na cesta
básica, ela tem que contemplar um livro, um ABCD da coisa. Outra coisa que
está evoluindo, e no que o Hip Hop tem contribuído, é que os livros hoje
estão conversando coisas que têm mais a ver com a linguagem do povo. Já
tem livros de história hoje que contam a história do negro da ótica do negro.
Antes não tinha. Quando eu estudei, os livros eram todos assim: Duque de
Caxias era o herói, Zumbi era o pilantra. Hoje isso vem mudando, nós temos
acesso a muita coisa. A educação não está falida, ela está trabalhando.
Só que é muita coisa para movimentar, é muita terra para tirar de cima da
verdade, não são só sete palmos de terra para tirar, são várias carretas.
CP • O outro elemento que você mencionou foi a família.
Em particular, o que a sua família teve que lhe proporcionou essa
formação diferenciada?
G • Primeiramente, a família constituída, porque eu tive pai e mãe,
e tive o nome dos pais na certidão de nascimento. Isso aí foi decisivo.
Você já começa balançando a partir do momento em que você chega e vê,
“pô, só tem o nome da minha mãe aqui”. Isso já é um fator que, para
auto afirmação do moleque dentro da quebrada, no dia-a-dia, nesse mundo aí,
até ele entender isso, leva muito tempo. Isso prejudica o estudo, prejudica
o diálogo na rua, isso revolta, e essa revolta muitas vezes não tem mais
volta, porque são cometidos atos diante da revolta que a pessoa tem no
coração. Também o exemplo da família, de perseverança. É por isso que,
dentro do Hip Hop, eu trabalho para ser exemplo para os moleques.
Eu quero que eles me vejam caminhando, não quero que eles me vejam
com um copo de cerveja num palco, eles jamais vão me ver com um cigarro
de maconha empunhando, metendo a cara numa carreira. Isso tudo me deu
a noção de que a minha vida não me pertence, pertence a essa causa, a
essa caminhada. Hoje, meus fi lhos não são mais Vitor, Guilherme e Mayara.
Meus fi lhos são essa molecada toda que está aí, com quem você tem que
trocar uma idéia, tem que bater um papo, tem que ter paciência
CP • Quer dizer que muitas vezes o discurso do rap tem de ser de pai
para fi lho mesmo?
G • Claro, eu acredito que sim. Você tem que falar como você fala
para alguém que você ama de verdade, alguém a quem você quer bem.
CP • Por que você acha que muitos rappers se recusam a assumir
esse discurso de pai pra fi lho, insistem que estão falando de irmão
para irmão?
G • Quando eu falo de pai para fi lho, não quer dizer que não seja
de irmão para irmão. Eu só falo que tem que ser um discurso pelo certo,
que adiante o lado daquela pessoa. Agora, o Hip Hop do Brasil teve esse
problema, nós passamos por uma fase de maturidade que era a de saber,
realmente, quem somos nós, qual é a nossa proposta. Hoje, por exemplo,
o que me guia no Hip Hop é a idéia de grande pátria latino-americana.
Da América Central para baixo é tudo a mesma caminhada, e depois
de a gente estar certo, quem quiser de lá de cima estar com a gente,
então beleza, vem para as trincheiras, mas estamos de olho em vocês,
que vocês estão muito envenenados… O Hip Hop americano tem outra
estrutura, é outro mundo, outro planeta. O capitalismo já tomou conta ali
de uma forma que é sem volta. Você vê, por exemplo, o Jay-Z. Por acaso
ele canta rap – na verdade ele é um megaempresário.
CP • Muita gente no rap tem exatamente essa marca que você
mencionou, de não ter o nome dos pais na certidão de nascimento,
não ter crescido numa família constituída. Como você sente que isso
marca o rap brasileiro?
G • Esse discurso verborrágico de alguns rappers tem muito a ver
com isso. O rap te dá a oportunidade de falar em primeira pessoa, você
se assume ali, é como se você se personificasse, como se você realmente
pudesse ser você, com autoridade de ser você, em cima do palco, com
as pessoas te ouvindo. É nesse momento que você vai exercer o seu
direito de falar: olha, é isso, isso, isso, acredito nisso, não acredito
naquilo. E é nesse momento também que você tem que ter a estrutura
para falar, mesmo diante de todo o seu problema, o que realmente
causou aquilo. Porque, se você pensar, o pai canalha, que deixou você
sem dados na certidão de nascimento, é alguém que foi vítima também
de outro processo. É uma fábrica de tragédias em série, de problemas,
como se fossem heranças mal-sucedidas. Daí vem uma coisa universal,
que os religiosos dizem, que é o “só Deus pode julgar”… Agora, é preciso
mexer, o Hip Hop é louco porque mexe com essas feridas, ele coloca
isso à mostra. Como é que a gente pode dizer que no Hip Hop não se
pode falar palavrão, que tem que estar bem, se a sociedade não está
bem, se a comunidade não está bem, se o Terceiro Mundo não está bem,
se o Brasil não está bem, se o capitalismo cada vez explora mais, se os
gigantes mostram cada vez com suas garras cada vez mais pesadas, mais
contundentes para a gente?… O Hip Hop é reflexo disso, irmão.
A má educação brasileira vai fazer com que nós não tenhamos uma boa
concordância verbal nas letras. A escola desestruturada vai fazer com
que os caras falem errado. E a revolta por tudo isso que esses problemas
sociais colocam, quando a gente personifica, vai dar nisso aí. Muitas
pessoas têm vergonha disso, não querem ouvir isso, mas, se você for ver,
são as pessoas que vivem no Brasil numa bolha.
CP • Essa vinculação tão estreita da poesia do rap com o
comportamento pessoal é uma particularidade do Hip Hop?
G • Tem o rapper artista, o rapper ativista, e eu acho que o conjunto
disso é o mais interessante. O Hip Hop não é como você vê, por exemplo,
como esse pessoal fazendo um samba tipo exportação, levando para
a Europa.. Eles são aplaudidos de pé, sentem como brasileiros aquilo
ali, mas não como personagens principais, como atores que viveram no
seu dia-a-dia aquilo… É isso que o Hip Hop tem como contribuição: essa
primeira pessoa tanto no discurso como no sofrimento, na passagem
realmente por aquilo ali. As pessoas perguntam: por que no rap você não
canta uma letra do Brown (Mano Brown, dos Racionais MCs), do (MV)
Bill, do Rappin’Hood… É que, embora periferia seja periferia em qualquer
lugar, as experiências, por mais parecidas, não são as mesmas… Essa
idéia da veracidade, do seja você mesmo, da verdade, que impera no Hip
Hop, é o que nos impede de fazer isso.
CP • Muitas vezes, num rap, o MC’s assume na narração em primeira
pessoa um personagem que é outro, freqüentemente alguém que está
na marginalidade, no crime. Como fazer quando esse personagem é
confundido com o próprio cantor?
G • Aí a gente volta mais uma vez naquela fi ta que é a
responsabilidade, a sabedoria de como colocar o texto. Em “Quando
o pai se vai”, eu falo de dois tipos de pai: um que não assumiu a
paternidade, mas também de outro – a mãe morreu e ele criou os quatro
fi lhos, “pensou em se casar, mas não arrumou ninguém/ que tratasse
seus fi lhos bem/ da forma que ele realmente queria/ e fez um voto que
viúvo continuaria”. É preciso apontar que tem o bom pai dentro da
quebrada, que o Hip Hop colocou o pai numa via crucis, a mãe sempre é
a heroína, e o pai é sempre o pilantra. Também é preciso apontar o que
é a fi ta do tráfico. Em “O Amor versus a guerra”, eu descrevo o glamour
do crime – “Prestígio, muita fama/ sobre a cama, mulher-dama/ muitos
trutas, muita grana/ sai do pó, sai da lama/ nunca perde, sempre ganha/
sempre bate, nunca apanha” – mas, no final, ele arruma aquela mina que
se pergunta: “eu quero um cara que, aos 30 anos, já não existe mais?
Ser viúva aos 20 e poucos? Ter um fi lho órfão aos 3, 4, 5 meses de idade?”
Esse discurso é colocado, o Hip Hop tem essa responsabilidade…
Se o Hip Hop não tiver esse discurso forte, verborrágico, mas agregado à
família, agregado ao certo, a gente vai perder mais e mais parceiros nessa
roda viva, nessa ciranda capitalista. Quando eu escrevi essa letra, muita
gente, muito parceiro de outros grupos de rap falou: “ô Gog, falando de
amor, de mãe? Essas fi tas aí não viram”. Mas eu falei: claro que vira, você
tá mexendo com o coração, o sentimento das pessoas… No Brasil, até
pelos outros gêneros musicais que imperam em termos de público, as
pessoas acham que tem que ser sempre um refrão fácil, uma letra boba,
e essa é a química do sucesso. Eu falo: mano, é mais do que sucesso.
O respeito é eterno, sucesso é euforia. Eu não quero, para o meu orgulho,
dizer: olha, vendi 1 milhão de cópias. Quem sabe, 50 anos depois de eu
ter morrido, tenha uma comemoração como vai ter agora dos 40 anos
de Che Guevara e se diga: “olha, o cara foi super importante para o povo
latino-americano, para a grande pátria…”
CP • Você se orgulha de viver de poesia?
G • Eu me orgulho de viver da verdade, porque tem muita poesia
mentirosa. É muito bom você dizer: “eu sou eu mesmo, isso aqui que eu
faço sou eu, não tem personagem”. É o que eu busco, é o que eu vejo, é a
minha forma de analisar, a mentira não está presente. Essas coisas é que
eu tento mostrar para os moleques que são possíveis. Não precisa você
vestir um personagem, ser ele duas horas do show e passar as outras 22
horas se escondendo daquele personagem.
CP • Como você pensa essa sua parceria com músicos de classe
média, como Lenine, Maria Rita?
G • Também é uma frase de “Malcolm X foi a Meca, Gog ao Nordeste”:
“Música é universal, mas tem que ter identidade”. Música é universal,
irmão. É interpretação, é sentimento. A gente não pode colocar uma
fronteira: até ali onde vai o barraco é sentimento, onde começa os prédios
é mentira. Não é dessa forma. Tem muita gente que habita os barracos de
madeira e não é de verdade, e tem muita gente que habita os prédios e é
de verdade.
CP • No seu último disco, há uma faixa, “Sonho real”, que narra de
uma forma muito semelhante (embora declaradamente oposta) à de uma
reportagem sobre um episódio de violência contra um grupo de sem-teto,
ocorrido em Goiânia, em 2005. Por que o rap assumiu esse papel de fazer
“jornalismo”?
G • O rap é o jornal do povo, ele fala na linguagem do povo
o que o povo quer ouvir, mas ele dá uma cara de qualidade nisso.
Tem jornalzinho aí que você torce, escorre sangue, mas esse aí não é
o jornal do povo, eu me nego a falar que aquilo ali é o que o povo quer
ler. Mas quando você fala: “olha, mano, aqueles barracos ali que estão
derrubados, tem famílias que moram ali dentro”. Quando você olha
aquele senhor que está ali, vai passar a pista (aponta para um morador
de rua idoso, que passa perto de nós): ele tem uma história, é um dos
caras mais queridos da Candanga, é das antigas. Agora, o cara vem aqui,
fl ap, tira uma foto: “Candangolândia repleta de mendigos”. Os caras
fazem assim, esses jornais que tentam ser populares e são populistas
agem dessa forma. O Hip Hop, como é que faria? Ele poderia até tirar
uma foto dele, mas diria assim: seu Zé, trabalhador, várias derrotas
que nunca o fi zeram curvar, ele não parou de caminhar, ele não parou
de respirar. Ele ainda tem sangue nas veias. Para mim, ele é mais um
rebelde brasileiro. Quer dizer, ele é atração na quebrada, ele não é o cara
que é só derrota. Dentro da derrota dele, tem várias vitórias. Hoje, dentro
dessa porra desse capitalismo que tem aí, dessa forma que é, várias
restrições que você tem são vitórias para você. Porque se torna uma
coisa tão ruim, tão materialista, no sentido de ter, ter, ter, querer, sempre
querer mais… O cara, mesmo sendo rico, não pára, porque senão vem o
outro e fi ca mais rico que ele…
CP • O capitalismo atrapalha a poesia?
G • Capitalismo e poesia não casam, não vira. Só para ter dinheiro
mesmo para publicar os livros, os discos, e já era. Capitalismo e poesia,
o cara não vai ter sensibilidade, só pensa em número. Só se for 1 + 1, 2,
2 + 2, 4…
CP • Você é um dos artistas do Hip Hop brasileiro que há muito
tempo identifi ca as proximidades entre o rap e algumas formas de poesia
popular. Quais as formas de expressão artística brasileira que mais
casaram com o rap, o influenciaram?
G • O repente é uma coisa que já vem na mente quando a gente fala
disso… E o samba: quando você começa a ouvir Cartola, Dicró, Fundo
de Quintal, tem uma proximidade muito grande. O soul, a black music
brasileira, Gerson King Combo, Toni Tornado, é uma coisa que já tem
uma identidade. E muita coisa da chamada música popular brasileira,
essa exportada: Lenine; Gilberto Gil tem algumas coisas para gente
trabalhar, na primeira fase dele, Tropicália… Aí já vai mais para área da
pesquisa musical, você trazer para o universo do Hip Hop aquilo que
é de atitude, mas está desgarrado do seu estilo musical. Tem vários
textos de artistas da MPB, do samba, do repente, que têm a direção da
transformação social, da caminhada, mas não têm uma roupagem que
tenha identificação com a gente.
CP • O rap sempre se afirmou como cultura negra. Como você vê essa
afirmação de um rap nordestino promovido por você?
G • O rap teve num primeiro momento esse discurso da negritude,
mas ele sempre foi periférico, e na periferia tudo se encontra. Quando
você chega, a proximidade do samba, da embolada, do repente… Ele está
ouvindo Marvin Gaye, Toni Tornado, mas a mãe dele está ouvindo Marcio
Greik, Odair José… Esse caldeirão é a periferia, é onde tudo se encontra.
É como se fosse a pororoca, o encontro das águas do mar com as águas
do rio Amazonas… Mas você vê que, até na natureza… Lá na ilha de
Marajó, durante quilômetros as águas do mar são doces. Então, há
resistência… Ele vai empurrando até que não tem mais jeito…
CP • Você é reconhecido pelo pessoal do movimento da Literatura
Marginal como o primeiro rapper que chamou um desses autores para
subir ao palco – no caso, o Sérgio Vaz, que aliás é o idealizador do sarau
da Cooperifa… Como surgiu essa idéia, por que você achou interessante
trazer para o Hip Hop esse movimento?
G • O rap é o canto falado da periferia, e a poesia marginal é o texto
escrito, é caneta e papel na mão. As letras do Sérgio são raps, só falta
musicar. Os textos do Ferréz são raps, é só pegar e musicar aquilo ali.
É até um projeto que um dia pode acontecer: pegar as poesias desses
grandes autores. Eu estava um dia desses conversando com o Nelson
Maca (autor que participa do movimento da Literatura Marginal), lá
de Salvador: até incomoda essa fi ta de poesia marginal, quando nós
somos o centro do problema, nós estamos no centro. Na realidade,
marginal é quem está à margem disso aí tudo. Mas veja como o Hip Hop
está comandando, movimentando uma roldana hoje. Você vê que esse
discurso, essa caminhada, do rap engajado, a literatura, tende a ser mais
universal que o discurso da “sabedoria de rua”.
CP • Pois é. O Hip Hop sempre se colocou como cultura de rua,
sabedoria de rua, aquela história de que “a rua me atraía mais do que
a escola”. Como você vê isso?
G • Isso limita a expansão do Hip Hop. Chega uma hora em que a
sabedoria de rua não vai te tirar da cadeia. Você acaba sendo refém
da sua ignorância. Quando eu falo ignorância, é não ter acesso àquele
conhecimento. O acesso ao conhecimento não pode ser limitado. O rap,
como o jornal da periferia, do povo, não pode ser limitado. Ele tem que
buscar a informação e ser verídico, ser idôneo, ser isento. Tem que colocar
a idéia, puxar a orelha dos moleques: olha, você tá tomando esses tapas
porque lá na frente vai pegar é cadeia. Hoje, esse castigo que você está
tendo aqui é porque lá dentro, ó, os caras não aliviam.
CP • Por que o rap brasileiro adquiriu esse tom majoritariamente
direcionado para um discurso de conscientização? No passado, houve
outras opções. Por que essa foi a que vingou?
G • Para ser sincero: até 88, 89, o rap brasileiro tinha uma cara.
Eu ouvia Thaíde nessa época. Achava legal, mas não me despertava para
nada. Mas, quando eu ouvi o Racionais MC’s, aí foi foda: “Então, quando
o dia escurece, só quem é de lá sabe o que acontece” (versos iniciais de
Pânico na Zona Sul, uma das primeira faixas gravadas pelo grupo).
Eu que já vinha, já tinha um texto, falei: “caramba, olha a contundência,
a dureza, junto com o texto, junto com a verdade, a palavra, a evolução,
a revolução…” A partir daí, jamais fui o mesmo. Só que eu tenho que dizer
o seguinte: na mesma hora que fez essa revolução, o Racionais fez o mal
também. Porque a fórmula do Racionais só funciona para o Racionais,
e fi ca todo o mundo tentando a fórmula do Racionais. Cara de mau só
funciona para o Racionais. Aquela postura é a postura deles, não dá para
copiar. O fato de eles não irem a uma emissora, não darem entrevista
só funciona para eles, não funciona para mim. E muita gente caiu nessa
armadilha. E eu não sei se o Racionais não contou isso, ou demorou a
falar para os caras, mas isso atrapalhou o Hip Hop, cansou, afastou ele
da sua caminhada de seguir em frente… Eu acho que, se você trabalha
todo dia, vai ter sua casa para morar, vai ter um conforto melhor. E cadê o
conforto do Hip Hop? Não tem, porque nós muitas vezes não trabalhamos
de forma objetiva. Hoje, o que a gente sente é que altos grupos bons, que
existiam por aí, sumiram porque muitas vezes não tiveram personalidade
para seguir sua própria caminhada, para ter seus objetivos no dia-adia
e não conseguiram acumular o que era preciso para sobreviver,
seu oxigênio… As pessoas não observaram o seu ambiente, até onde
poderiam chegar, não tiveram um projeto… E se confundiram.
CP • Se cresce a diversidade, o que continua unificando o Hip Hop?
G • Esse casamento entre o discurso e o ritmo. Porque o ritmo –
não dá. Quando você ouve um rap, você já começa aqui (simula balanço
da cabeça e dos ombros). Mas o que vai mesmo definir a longevidade
daquilo é o discurso. O que vai sempre atrair o público periférico é essa
proximidade, essa ligação direta com o dia-a-dia do povo.
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